Te vejo nos meus sonhos

Uma trip do Fórum Mundial Psicodélico, na Suíça, a um workshop de sonho lúcido no Hawaii

Trip envia seu repórter ao primeiro Fórum Mundial Psicodélico, na Suíça, para encontrar o lendário dr. Albert Hofmann, 102 anos, descobridor do LSD. Mas ele só consegue achá-lo no Havaí. Primeiro em um sonho lúcido, durante um workshop com Stephen LaBerge, papa do assunto. E, um dia depois da morte de Hofmann, em uma viagem de ácido puro

texto e fotos bruno torturra nogueira, de basel e havaí  ilustrações zansky

Havaí, 26 de abril

Então é isso: esta matéria é um fracasso. Que vergonha. Stephen LaBerge desistiu da turma, sem mais nem menos. "Vocês são umas bestas", disse algo assim e partiu, deixando para trás 14 alunos e seus companheiros de workshop. Quanta grana, ou melhor, quanta verba editorial foi gasta para que o presente repórter desfrutasse de nove dias em um curso que soava promissor. Dreaming and Awakening, uma série de aulas e exercícios que oferecem ao pagante a chance de obter a lucidez e poder controlar aquela hora doida em que seus olhinhos mexem depressa e seu corpo está entregue a uma doce paralisia: o sonho.

Um curso de sonho lúcido, resumindo, com o papa do assunto, Stephen LaBerge, Ph.D. Pesadelo, melhor dizendo. Pois, se agora mesmo eu estava em um pacato refúgio à beira-mar da Big Island do Havaí, olho para o lado e só vejo a avenida Rubem Berta. Plena tarde horrorosa de São Paulo. Ao meu lado caminham Keelin e Dominick, os parceiros de LaBerge. Eles mantêm o sorriso e tentam passar um pano no surto arrogante do dreamstar, temerosos do que esta reportagem vai relatar aos senhores leitores. "Calma, Bruno", a doce Keelin começa, "Stephen nunca fez isso. a maioria dos alunos sai muito satisfeita." Digo que sim, mas ainda me assombra a idéia de terminar tão esperada matéria com uma grande brochada onírica. Mas. Mas.

Hum.

Paro o passo e me pergunto. Keelin e Dom em São Paulo? Na Rubem Berta, indo a pé para o aeroporto? Espera. Espera. Presta atenção. Tem um outdoor do outro lado da rua. Publicidade exterior em SP?! Ahá! Me lembro! Sim, eu me lembro. Stephen não desistiu coisa nenhuma. Estou no meio de um sonho. Sim! Sim! Isso é um sonho!

Agora só preciso recordar das lições:

 

1- Esfregar as mãos. Sim, esfrego mãos de sonho como forma de estabilizar a presença. Sinto meu corpo sólido e seguro no sonho.

2- Não esquecer. Segurar a lucidez na base da martelação mental. Como um mantra repito: estou sonhando.

3- Caprichar. É o que faço.

Despeço dos dois com educação e saio voando como se a gravidade fosse um opcional do mundo.

 

Meu corpo está em uma cama de solteiro em um quarto de um retiro predominantemente gay e budista na Big Island. Uma máscara desajeitada cobre meus olhos com sensores de movimento rápido dos olhos (REM), timers, alarmes e LEDs piscantes.

Meu cérebro está influenciado por dias de vontade, exercícios, informação e duas pílulas roxas com extratos de plantas psicoativas - um turbo de memória para ajudar o sonhador lúcido na sua tarefa número um: lembrar que está sonhando.

Já minha consciência está aterrissando de barriga em um gramado bem aparado de uma mansão com vista para o oceano. Um cachorro enorme me recebe deitado no chão e diz: "É divertido!". Segue-se um sonho longo e exploratório trespassado de cenas cortadas e palavras que são lidas como frases. Atravesso paredes, faço vôos acelerados até que. de novo. eu ME LEMBRO. Ao lado do meu corpo, em cima do criado-mudo de meu quarto, o plano de sonho que redigi dizia a intenção da noite com todas as letras: encontrar Albert Hofmann.

Em um golpe só no sonho, me vejo no apartamento do chapa Ronaldo Bressane. Sentado em uma larga cadeira escura está ele, dr. Albert Hofmann, o pai do LSD, aos 102 anos de idade. Primeira pergunta:

- Recebeu meu bilhete, doutor?

 

Basel (Suíça), mais de um mês antes, 20 de março

Estou no lobby de um hotel bacana, redigindo um bilhete escorado no balcão.

- Pois não, senhor?, chega um funcionário ariano.

- Estou procurando o quarto do dr. Albert Hofmann.

Enquanto o fleumático bell boy vasculha um monitor oculto, a nata da psicodelia engrossa no leite suíço, fazendo fila para o check in. Eles estão ali para participar do primeiro Fórum Mundial Psicodélico. Ali do lado pode ser avistado Ralph Metzner, dos mais fluentes e influentes autores de pesquisas e teses psicodélicas. Parceiro de Timothy Leary ainda em Harvard, quando promoviam testes com psilocibina em voluntários. Por ali também está Stanislav Grof, psicólogo tcheco, radicado nos EUA, considerado por dr. Hofmann como o padrinho do LSD. Ele abriu largas estradas na psicoterapia com estados alterados da consciência e desenvolveu campos como a psicologia transpessoal e técnicas de respiração holotrópica. Carolyn Garcia, mais conhecida como Mountain Girl, está sentada com seu sorriso de Buda em uma poltrona. Comovente observar tão bela senhora, passageira VIP no ônibus psicodélico de Ken Kesey que percorreu os Estados Unidos nos anos 60, esposa de Jerry Garcia, do Grateful Dead. Seria possível gastar toda a reportagem dizendo quem eram aqueles sujeitos que lotavam o saguão do hotel. Mas agora não, o bell boy trouxe seu saldo:

- Ele não chegou. Mas tem a reserva. Quer deixar recado?

- Um bilhete, sim?

 

Caro dr. Hofmann,

me sinto feliz em lhe escrever de próprio punho. Especialmente hoje, depois de tantas coincidências que me trouxeram aqui a Basel. Há tempos procuro uma forma de me comunicar com o senhor.

Meu nome é Bruno, sou repórter de uma revista brasileira chamada Trip. Fui enviado para cá na ocasião do fórum para tentar entrevistá-lo.

Se uma entrevista não for possível, peço o quanto de tempo puder dispor para algumas palavras e para que eu possa lhe entregar um exemplar de nossa publicação.

Formalidades à parte, para mim seria uma imensa honra. Sou grande admirador de seu trabalho e rogo para que seu legado não se perca nas sombras de leis ignorantes.

Voltarei a procurá-lo mais tarde. Por enquanto, estou no mesmo hotel do senhor, quarto 516.

Muitas felicidades

Bruno

 

Dois dias antes, em São Paulo, eu corria para pegar o vôo para a Suíça quando a Polícia Federal bateu um recorde. A maior apreen­são de ácido já feita no Brasil. Dez mil unidades, ou "pontos", como chamou o delegado, importados de Amsterdã, chegando a Curitiba. Os responsáveis pela dura divulgaram em nota que o "LSD é uma droga alucinógena". Jogaram quatro homens na cadeia. Também divulgaram uma foto. Dez mil bicicletinhas desenhadas em quadradinhos de papel e uma singela homenagem. "100 years."

 

A data celebra o centésimo aniversário de Albert Hofmann, em 2006. Ele descobriu o LSD em 1938, enquanto pesquisava compostos derivados do ergot, um fungo parasita do trigo. A tal vigésima quinta dietilamida do ácido lisérgico, o nome completo do LSD-25, era instável demais como molécula. Foi para a gaveta como muitos de seus primos. Mas, cinco anos depois, dr. Hofmann sentiu uma intuição que ele cuidou de seguir. Retomar a pesquisa com o LSD. E, por um "acidente", como ele mesmo coloca entre aspas, em 1943 ingeriu uma quantidade ínfima da substância e sentiu-se, em suas palavras, "em um estado de sonho, com meus olhos fechados, percebi um ininterrupto fluxo de imagens fantásticas, formas extraordinárias com intensas e caleidoscópicas cores". Aturdido, decidiu tomar deliberadamente uma dose diminuta, 250 microgramas. Não sabia que havia descoberto a mais potente molécula psicoativa. O quarto de miligrama que provou era uma dose bem forte de seu composto. Depois, voltou para casa de bicicleta. Eis a homenagem impressa nos 10 mil pontos de Amsterdã. Pedalando pelas ruas de Basel, dr. Hofmann teve a primeira grande trip de LSD. Até hoje, e cada vez mais, sua intuição e os acidentes que resultaram no composto são vistos por seus seguidores como algo metafísico, uma clara dissimulação das forças que regem a existência. Inaugurou-se a idade psicodélica.

 

Psico = mente. Delos = forma, manifestação. Mente manifesta. Eis como o psiquiatra Humphrey Osmond e o escritor Aldous Huxley batizaram os efeitos das substâncias que começavam a despontar na elite da psicologia européia. Pelos 20 anos seguintes, tais compostos foram estudados em diferentes níveis, e os resultados das pesquisas não poderiam ser mais animadores. LSD, mescalina, psilocibina apresentaram um potencial inédito como psicoterapêuticos. Por um motivo: seus efeitos não são meramente alucinatórios quando aplicados de modo seguro e guiado. Boa parte da academia concordou que tais moléculas calibravam a mente em estados transitórios de profunda atividade sensorial e simbólica. Em última análise, enchiam a consciência de metafísica e possibilidades. As imagens, sinestesias, explosões de cores e outras visões não passavam de leituras de uma mente reinterpretando a realidade e se revelando a si mesma.

Tudo corria dentro da. normalidade? Terapeutas promoviam sessões psicodélicas e exaltavam tais substâncias como elixires milagrosos. Intelectuais e artistas se aventuravam pela intrigante promessa do Delysid (nome comercial do LSD vendido pela Sandoz) e reviam em questão de horas todas suas certezas estéticas. A CIA mantinha um secreto e maciço programa de testes explorando ao limite as possibilidades do LSD em gente sem noção do que estava tomando. O governo americano procurava nos psicodélicos uma arma de controle mental. Em uma história digna de um thriller, a extensão dos testes acabou abrindo margem para que o LSD tomasse as ruas como a droga da desobediência. Os anos 60 estavam começando, e a descoberta do dr. Hofmann foi o estopim que faltava a uma sociedade preto no branco, que estava pronta para explodir em cores e transformações.

Em questão de meses o LSD perdeu a bula. Muita gente foi salva, muita gente surtou. Hippies tomavam como chicletes, yippies como arma política, políticos como obra dos comunistas, religiosos como coisa do diabo e a mídia como a manchete perfeita. Quando a psicodelia tomou ares de revolução, manobras do conservadorismo norte-americano trataram de proibir o LSD e todos os psicodélicos. Tudo para a lista um das drogas mais perigosas, ao lado de heroína e outras. Resultado: as pesquisas cessaram e os traficantes fizeram a festa. O termo psicodélico, que prometia se tornar um ramo da psicologia, virou clichê, sinônimo de uma estética, não de uma escola. E hoje o que se conhece por ácido, ao menos no Brasil, não passa de alguns parcos microgramas de LSD combinados com anfetaminas e aditivos para festas.

Mas, enquanto as 10 mil bicicletinhas iam para o lixo em Curitiba, mais de 100 nomes voavam para Basel com a intenção de tirar substâncias como essa das mãos da polícia e devolvê-las a cientistas, terapeutas, filósofos e místicos. Lendas vivas dos últimos 50 anos e alguns dos 1.500 inscritos para as palestras estão no mesmo hotel em que o presente repórter. Pesquisadores, xamãs, botânicos, músicos e entusiastas em geral estão chegando dos cinco continentes. Especialistas em LSD, DMT, mescalina, iboga, ayahuasca, maconha e todo o tipo de composto capaz de levar mentes ao céu e ao inferno como escalas de um mesmo vôo.

Vai começar o Fórum Mundial Psicodélico. Missão: fortalecer o que eles acreditam ser a renascença do movimento. Uma sólida e coesa retomada das pesquisas e das políticas relacionadas a essas substâncias depois de 40 anos de sombras. Na visão desse povo reunido em Basel, a experiência psicodélica é cada vez mais necessária. Relativizar a percepção como forma de buscar mais lucidez. Mergulhar em estados descritos como sonho para despertar uma sociedade caminhando ao abismo.

Visão oposta da que orienta a lei e do pensamento genérico de críticos e muitos usuários. Para os defensores da proibição irrestrita, psicodélicos são indutores de psicoses, químicos que desencadeiam transitória ou definitivamente estados de loucura. Ou, na posição de psiquiatras mais céticos, o reconhecido fluxo de pensamentos simbólicos e reprimidos pode ser, no mínimo, tão arriscado quanto benéfico. Basicamente não devemos revirar lixo mental que está, sabiamente, enterrado. Ou, simplesmente, a idéia globalizada e reverberada nas campanhas de prevenção de que drogas são drogas. Melhor não usá-las. E ponto final.

 

Por mais diferenças que toda a fauna humana pudesse ter naquele hotel psicoativo, de algo todos compartilhavam. A vontade de encontrar Albert Hofmann, ilustre habitante de Basel, convidado de honra do evento.

Aos 102 anos é percebido como uma espécie de santo, ou melhor, um profeta que trouxe um evangelho não verbal, não dogmático, onde a Palavra é recebida direta e internamente através de uma molécula. Para seus seguidores, sua descoberta foi para a mente o que as caravelas foram para os impérios. Um novo mundo a ser explorado, a chance de expandir certos limites de forma nunca antes possível.

 

Havaí, 24 de abril

 

Ergue os braços, fala acelerado, faz onomatopéias, vozinhas estranhas e piadas tolas a todo momento. Caminha como um comediante, mantém os olhos arregalados, carrega uma bengala azul com fitas douradas e usa macacos de pelúcia e uma Barbie vestida de havaiana como recurso didático lecionando a 14 adultos de boa formação. Pode até parecer, mas Stephen LaBerge não tem nada de bobo. Sua persona na aula, que não difere muito do que é nas tardes livres de seu workshop, é um tipo de marca. Um carisma inusitado que orna ironicamente bem com o produto que vende: lucidez. É que, para LaBerge, lucidez tem mais a ver com questionar a realidade do que exaltá-la.

Ele se tornou doutor em 1980 por seu estudo com sonhos lúcidos. Até então a experiência era restrita a relatos de ocorrências espontâneas, à prática oriental de dream yoga, ao cultivo do estado por artistas e curiosos ou ao simples descrédito por parte do mundo acadêmico. E foi na academia que LaBerge mirou quando começou seus experimentos. Caminhando em seguras estradas científicas, ele provou com sinais e registros de eletroen­cefalograma a lucidez no estado do sonho. E pelos últimos 30 anos tem gasto seus fartos neurônios a explorar possibilidades e aplicações para tal condição, a convencer céticos de que tais fenômenos existem e a dar aulas para gente de todo tipo que se dispõe a viajar ao Havaí para aprender a sonhar. 

Gente como Nick Palmer, americano sessentão de humor ácido e pessimista, cínico e amoroso senhor que vive quieto no vasto Estado de Montana e está lá para "sonhar uma saída para o estado horrível em que o mundo se encontra". Ou como Luciana Hall, inglesa de roupas e sotaque clássicos, que levou na bagagem um aparato para escanear as cacholas dos colegas de graça. Ela é uma artista que usa ondas cerebrais como matéria-prima para suas apresentações. Ou Frederick, um funcionário do comissariado dos direitos humanos da ONU no Nepal. Ou Lina, sueca de 23 anos rodando o mundo pela primeira vez. Ou Daniel, um químico francês pesquisador de psicoativos na casa dos 50. Por nove dias, dividindo quartos e mesas, assistimos a duas longas aulas diárias e preparamos nossas mentes para o sono, as horas mais agitadas de nossa jornada.

Não tem truque. Mas há uma chave que acorda a consciência enquanto o corpo dorme. A memória. Ela é a ponte entre os dois mundos. Uma distância que LaBerge, já no primeiro dia, cuida de reduzir ao mínimo. Com a palavra, nosso teacher:

"Quem aqui acha que está acordado?" Os alunos dão risada. Mas Stephen está falando sério. "Levanta a mão quem acha que está acordado." E logo começa um colóquio que, apesar de rotineiro para ele, é proferido com clara paixão. LaBerge insiste que é mais difícil do que parece diferenciar os dois estados. E que o questionamento constante sobre em qual estado estamos é a base para a lucidez. No sonho e na vida desperta. Os nove dias de internação não são para complexas lições ou malabarismo mental. Servem mais como um intensivão de reprogramação. Ou como forma de incutir na cabeça dos sonhadores uma constante suspeita. Um modo desconfiado de reconhecer que tudo, todo o tempo, não passa de uma simulação.

A princípio pode parecer besta, um jeito fácil de entender a realidade. Mas LaBerge tem estrada nesse campo. Não apenas como explorador da terra dos sonhos, mas como estudioso das ciências cognitivas. Sabe alterar certezas na base do argumento e da sedução. E explicar que nossos cinco sentidos e a forma como a mente humana é construída servem mais para restringir do que revelar. Mais para resumir do que destrinchar. Passa suas aulas disparando grandes verdades cósmicas e existenciais em tom de uma estranha comédia. "Stephen é como um personagem de sonho", define Keelin, comparsa de Stephen nas aulas e no instituto Lucidity.

 

A rotina no curso é bastante simples. Uma aula de duas horas e meia pela manhã e outra à noite. A tarde é livre para exercitar a vontade e a intenção de sonhar lucidamente; e para "testes de realidade". Uma prática tão bizarra quanto útil, cuja função é desfazer a simples suposição de que estamos acordados. Basicamente devemos criar a obsessão de checar o dia todo se estamos dormindo. Os testes podem ser bastante simples. Olhar um relógio, desviar a vista e checar de novo a hora. Em sonhos, números e palavras costumam ser instáveis e confusos. Coisas assim. Ou, na ocasião do workshop, apertar um botão em nossa testa.

Estranho, pois não. Mas estranheza é nossa matéria-prima. O botão a que me refiro é parte do NovaDreamer, a máscara criada por Stephen e seus asseclas. Trata-se de um acessório para a noite, aparelhado com uma sofisticada engenhoca eletrônica. Ela monitora o sono do usuário e o ajuda a se tornar lúcido dormindo. Da seguinte forma: o NovaDreamer sabe quando você está sonhando. Ele possui sensores junto aos olhos que reconhecem o sintoma número um da atividade onírica: o REM (Rapid Eyes Movement), o movimento rápido dos olhos. Dependendo da programação, o NovaDreamer dispara LEDs vermelhos piscantes para dar uma pista ao sonhador. Se no meio de um sonho o céu começa a piscar ritmadamente, ou um caminhão dá flashs com seu farol, ou os olhos de um personagem começam a emitir uma forte luz. fica mais fácil de lembrar. De chegar àquele delicioso "Ahá! Isso é um sonho".

Essa frase, essa revelação, esse estado de surpresa embasbacante é o objetivo dos alunos por ali. Mas de longe não é um fim em si mesmo. Porque se dar conta é apenas o começo. Para um sonho lúcido valer a pena, precisamos:

1- Não acordar.

2- Manter a lucidez.

3- Lembrar do sonho ao despertar.

Cada uma dessas técnicas demanda exercícios e resoluções diferentes. Manter um diário de sonhos detalhado, repetir para si mesmo ao deitar que "vai porque vai saber que está sonhando", procurar sinais de sonhos na vida real, ganhar o hábito de testar a realidade, entender os ciclos do sono e como a consciência constrói a realidade. "OK, OK", pode pensar o leitor, "pra que isso? Por que não sonhar em paz e tocar a vida como sempre?". Pergunta crucial que LaBerge respondeu na primeira entrevista que deu à Trip. Enquanto boiava em uma piscina de águas termais com vista para o mar.

"Para muita gente, especialmente para nossa cultura, sonhar é apenas sonhar. Algo que pode ser esquecido. Tudo bem. pode-se ver assim. Mas não precisa ser assim. Se você analisar a atividade cerebral durante o estado de REM, vai ver claramente que ela é mais do que semelhante à do estado desperto. O que significa que nossa mente está com o mesmo processo de construção da realidade, mas nossos sentidos estão fechados. Então utilizamos na construção desse novo mundo coisas que ficam em segundo plano quando estamos acordados. Nossos medos, nossos desejos, necessidades. Se estivermos atentos a isso, capazes de pensar e interagir com esse mundo interno, poderemos aprender muito sobre nós mesmos e enfrentar medos e coisas que, na vida real, vão para debaixo do tapete."

Autoconhecimento, portanto. A boa e velha busca milenar.

"Sim. E você pode levar isso a níveis muito mais complexos e interessantes. Ter experiências de morte, ir para diferentes universos, livrar-se do corpo, entrar em contato com sentimentos de unidade muito profundos, com o indizível mesmo.", e fecha a boca com um sinal de zíper. Para logo abrir em uma larga risada: "Ou apenas sair voando e fazer sexo, pela pura diversão".

Mas você enxerga algo espiritual, a possibilidade ou a presença da algo como alma nesse processo?

"Eu sou um cientista. E mantenho minhas certezas e lições calcadas nas evidências. Agora, sinto que há uma terceira parte da nossa consciência que não está presa ao plano físico newtoniano. Veja. temos o hardware, que é nosso cérebro, a química e os impulsos elétricos que coordenam uma parte. Temos o software, que são as programações e os jogos mentais que possuímos como espécie, a linguagem, arte, códigos, a cultura para lidarmos com o mundo. E há uma instância que me parece ter a ver com a noção de quem somos, com o sentimento de busca, de conexão com algo maior e.", zipa a boca de novo, "com a capacidade de perceber a unidade, algo que não fomos feitos para entender. mais do que isso. não posso afirmar."

 

Sonhar não custa nada, mas a lucidez made by LaBerge pode ser bem salgada. Para um brasileiro, dependendo da época do ano, pode sair por até R$ 10 mil. Isso sem a garantia de que você vai voltar para casa com ao menos um sonho lúcido daqueeeles. O que você pode ter certeza é que vai voltar carregado de ferramentas para continuar a tentativa no aconchego de seu lar, e não mais no Havaí, distante e cheio de sapos insones. Nove noites em seqüência de máscara no rosto, interrupções voluntárias, testes de realidade, anotações e meditações. E nove manhãs para relatar em grupo os sucessos e fracassos da noite.

Cada aluno no workshop também é um rato de laboratório do instituto Lucidity. Todos preenchem relatórios e fichas com horários, notas e breves descrições da noite. Esse processo analítico - no qual devemos julgar desde o quão bizarro foi o sonho, quanto sexo houve, até notar qual narina ficou mais aberta durante a noite - é mais um adubo na qualidade das memórias do sonho. De novo, a condição número um para a lucidez.

Eu poderia dizer que não era um forte candidato a ter sonhos lúcidos com facilidade. Dos presentes, eu era o único que não havia pesquisado sobre o assunto, nem havia tentado sozinho ou comprado os livros de LaBerge. Além disso, o custo da empreitada não saiu do meu bolso. Por outro lado, minha paranóia de retornar ao Brasil com uma matéria decente nos cadernos aumentava minha ansiedade e desejo de ter um sonho lúcido. Principalmente quando, a cada manhã, novas pessoas erguiam as mãos sorrindo. Tiveram um sonho lúcido na madrugada.

Meu problema, e o da maioria, era justamente a ansiedade, que cuidava de manter um sonho leve demais para ser retido quando eu começava a suspeitar que aquilo era, de fato, um sonho. Eu me preocupava com a máscara, com o inglês que dormia na cama ao lado e roncava, com a matéria, com não acordar. É como sexo. encanar demais com performance é a receita do fracasso. Depois de cinco dias de frustração, meu humor de coito interrompido, Stephen lança a novidade. As pílulas roxas.

Antes de recebermos os saquinhos com duas cápsulas, uma aula sobre a substância e um contrato padrão que nos comprometia a não revelar o nome da medicação. O motivo é muito simples: evitar alarde. Como droga ainda legal, vendida de forma natural na internet e em certas farmácias, a fama pode ser uma péssima companhia. Da mesma forma que muitos psicoativos de alto poder terapêutico, que começam a vida em caixinhas de laboratórios, nossas pílulas do sonho podem muito bem cair na lista negra dos EUA. Aquela que demoniza qualquer atalho químico para transformações da consciência.

Diferentemente de psicodélicos, com os quais a realidade pode ser transformada pela percepção em estados muitas vezes comparáveis a sonhos, a pílula roxa só se revela psicodelicamente quando dormimos. Durante o dia, o máximo que ela provoca é um acréscimo de atenção e algum estímulo. No sono. os sonhos ganham cores e formas formidáveis, complexidades incomuns e, o principal, um boost de memória que facilita e muito o tal "Ahá!

Eu me lembro!". Não deu outra. segui a receita. Acordei no meio do terceiro ciclo de REM da noite, depois de três horas e meia de sono. Recordei do meu sonho, levantei da cama por meia hora, voltei aos lençóis, tomei os comprimidos e mentalizei até dormir: vou me tocar que estou sonhando. Foi quando me vi na Rubem Berta e saí voando. Foi quando, depois de me sentir um super-herói em um universo paralelo, materializou-se dr. Albert Hofmann para minha tão. sonhada entrevista.

 

Basel, 21 de março 

 

Custei a dormir na noite anterior, fritando com a expectativa de testemunhar um momento histórico. O auditório San Francisco, uma das bases do primeiro Fórum Mundial Psicodélico, está lotado. Uma silenciosa ansiedade no ar no que podia bem ser a última chance de ver um mito. Principalmente para aquelas centenas de almas que, de alguma forma, se sentem salvas pela experiência psicodélica. Conforme anunciado, Albert Hofmann faria o discurso inaugural, uma fala intitulada "Mudança de consciê­n­­cia como chave para um mundo melhor".

Os cochichos pelo salão, no entanto, prenunciam a água fria. Quando Lucius Werthmüller, um dos cabeças do evento, sobe ao púlpito, anuncia que dr. Hofmann pediu para ficar em casa. Aos 102 anos não se sente mais obrigado a nada, e deseja o bem e a felicidade a todos por ali. Palmas entusiasmadas e uma decepção resignada. Que fiel, afinal, pode se ofender com um santo?

Por trás da ausência de dr. Hofmann esgueirava-se a adequação da data presente. Um instante e tanto no mundo: primeiro dia da primavera (no hemisfério norte), lua cheia, convergindo com um dia sagrado para os hindus, em que a maconha é utilizada como sacramento por milhões de pessoas em uma cerimônia na Índia em que todos jogam tintas coloridas uns nos outros. Naquela sexta, o dólar bateu seu valor mais baixo em décadas, imagens de monges tibetanos mortos vazaram da China e tomaram a TV. Também era uma Sexta-Feira Santa, mesma data sagrada de um momento histórico para a psicodelia, ocorrido 46 anos antes. Em um evento que ficou conhecido como Experimento da Sexta-Feira Santa, Timothy Leary e seus comparsas em Harvard promoveram testes com psilocibina em uma igreja de Boston. O resultado até hoje é usado como argumento para o uso legal de psicodélicos como forma de melhorar mentes e relações humanas. Enfim, a data era sem dúvida um sinal, pensavam muitos dos presentes. Pessoas que ao longo do tempo reconhecem como um dos principais efeitos de uma vida psicodélica a dissimulação da realidade. Percebem como falsa a aleatoriedade com a qual o acaso se traveste.

 

Mesmo com o patrono ausente, a mesa inaugural recebe as mais célebres figuras do evento. Ralph Metzner, Mountain Girl, Stan Grof e Rick Doblin. Este último o mais jovem da turma. O sujeito que está por trás da renascença psicodélica que pipoca em vários países, depois de 40 anos de pause. Rick é o presidente e fundador do MAPS, a associação multidisciplinar para estudos psicodélicos. No ano passado Rick financiou dezenas de estudos clínicos e arrecadou US$ 45 milhões em doações e vendas de livros. Conseguiu autorizações para abrir testes clínicos com MDMA, ketamina, LSD e psilocibina. Junto com fundações como a Heffter da Suíça e a Beckeley inglesa, ele e seus jovens funcionários estão provando, como Grof, Metzner e outros nos anos 50 e 60, que o poder dos enteógenos transcende questões químicas.

Tais instituições, presentes em massa no fórum, estão começando a desovar devagar, mas continuamente, resultados de pesquisas feitas nos últimos 15 anos quase na surdina. E Rick Doblin está centralizando um grande aglomerado de relatórios e ações para uma verdadeira intifada legal. Usando a própria lei americana como base, quer provar por a + b que psicodélicos devem ser autorizados em contextos seguros e terapêuticos.

"Depois de quase 40 anos de rumores e noções preconcebidas, estamos começando a transformar as certezas das pessoas que vão atrás de informação. Agora elas encontram dados clínicos incontestáveis. Ainda que seja muito difícil medir com padrões anacrônicos coisas como medo da morte ou redução de ansiedade, o acompanhamento a longo prazo mostra uma melhora significativa no estado emocional de sujeitos submetidos a terapia psicodélica. E, mais do que uma questão individual de saúde ou liberdade, a experiência mística resulta em um sentimento de comunhão, em mais justiça social", Rick Doblin articula.

Com um sorriso que parece cicatrizado no rosto, Rick comemora o aniversário do experimento da Sexta-Feira Santa reproduzindo a pregação do pastor Panhke gravada na sessão de psilocibina na igreja de Harvard. "Rick está fazendo algo fantástico", diz John Harrison, terapeuta e pesquisador de ibogaína, um potentíssimo psicodélico utilizado na recuperação de dependentes de opiáceos, "ele está dentro do sistema, joga pelas regras para transformar a lei. É por isso que estamos avançando."

Tom Roberts, um dos organizadores do recém-publicado Psychedelic Medicine, dois volumosos tomos com os mais recentes resultados clínicos das vantagens e riscos da terapia psicodélica, define bem a crucial diferença do nascimento e do renascimento do movimento psicodélico. "A era de Timothy Leary, de exploração informal e ilegal, causou muitos problemas. Deu margem à histeria da imprensa e à caça às bruxas."

 

Evidente que os enfoques nas palestras eram os mais diversos possíveis. Desde a interpretação do amor como algo palpável fisicamente até um plano de negócios detalhado para a captação de recursos e a criação da primeira corporação psicodélica do mundo, com US$ 1 bilhão em dólares e ações no mercado. Desde análises clínicas e antropológicas sobre uso de alucinógenos até monólogos sobre a inteligência das plantas.

Meu papel, no entanto, era a princípio incômodo. Jornalistas não são vistos com bons olhos por gente que tenta andar no limbo entre a lei e a liberdade interna. Se a histeria da mídia foi grande responsável pela morte da pesquisa psicodélica, o erro da superexposição cometido por Timothy Leary, Ken Kesey e essa turma certamente não será repetido pelos renascentistas do século 21. Toda vez em que eu solicitava uma entrevista formal, um retrato, a resposta era quase sempre um sorridente "agora não, tudo bem?". Mesmo para uma revista chamada Trip, os doutores psicoativos hesitam. Temem dar material para manchetes sensacionalistas ou desculpa para baluartes da sobriedade reforçarem o estereótipo dos viajandões. Para relatar um encontro de gente que vive e estuda o FLUXO, o ideal me pareceu segui-lo. E ter o que todas aquelas palestras emendadas exaltavam: a experiência psicodélica, uma larga e serendipitosa manifestação mental.

Assim como é contra a repressão, a comunidade psicodélica é avessa ao tráfico. Suas fontes em geral são clandestinas, mas desligadas de redes criminosas interessadas em dinheiro grande, armas ou substâncias mais nocivas. Acreditam que tais compostos são mais próximos de remédios do que de venenos. Também botam fé em carma e em forças sutis agindo em tudo o que existe. Se os psicodélicos contêm lições e, de alguma forma, vida, os químicos são os primeiros responsáveis. E idolatrados como místicos, herdeiros contemporâneos de xamãs e alquimistas. Suas intenções e mentalidades tocam as moléculas como os pais transformam seus filhos. Não é apenas química, como não somos apenas genética.

Assim, dinheiro não era um assunto para os interessados em comprimidos. O grande barato era "conectar". Porque se algo une todos os entusiastas da psicodelia é a ânsia por companhia. E todos viam o fórum também como uma forma de estreitar contatos, conseguir trabalho e confiança das parcas fundações que bancam pesquisa. Mas que melhor lugar então para trocar cartões do que em festinhas nas suítes e no lobby do Swissotel?

Em uma dessas noites, eu explicava para os americanos que o etanol brasileiro não é a salvação da lavoura quando a onda de um MDMA muito fino chegou. Um fluxo verbal mais fácil e macio saía de todos e uma sensação interna semelhante a uma vitória. E tive certeza de que, dali em diante, tudo ficaria perfeitamente bem. Quando entra pela porta giratória um ancião negro de barba vermelha, ornado com infinitos broches e anéis. Custo a acreditar que era Lee "Scratchy" Perry. Vou ao encontro da entidade. Era um sinal, tinha que ser. Mas não sei. Sinal de quê? Só sinto uma felicidade tensa, um suspense que rufa em mim, como se uma resposta estivesse quicando na minha frente. Mas, por agora, era apenas Lee Perry.

- Com licença. Lee Perry?

- Simmm.

- O que o senhor faz por aqui?

- Eu moro aqui, my friend.

Faz sentido. Simmm, faz. Àquela altura eu havia entendido o que faz da Suíça um lugar único no mundo. Eles têm os melhores relógios, os melhores cientistas, lentes, cofres e a mais relaxada alfândega do mundo como forma de dizer: "Venham todos, bem-vindos. Não quebrem nada, não importunem ninguém e sejam o que quiserem. Nós só queremos olhar vocês passando".

Se havia de fato uma renascença florescendo naquele hotel, eu precisava de uma provinha, não apenas notas e cliques. Psicodélicos podem não ser viciantes como alegam seus profetas, OK. Mas o pensamento sobre eles é. E muito. Os "pontos" do tipo que a PF jogou fora, o que dá para achar no Brasil, já me divertiram, me confundiram e ensinaram muita coisa. Mas não posso dizer que tive uma experiência mística, transpessoal com LSD. O fato de estar em Basel, perto de dr. Hofmann e cercado dos papas da lisergia, era mais do que um chamado. Não pregava os olhos: eu estava fissurado.

 

Basel, 24 de março

Foram muitas horas, muitos cartões trocados, noites maldormidas e diferentes moléculas até o último dia de fórum. Eu nutria uma esperança muda de que Hofmann apareceria na cerimônia final naquele domingo de Páscoa. Um domingo de. renascimento, eu queria acreditar, já que, por obra do ponta firme destino, 200 microgramas do mais puro LSD disponível vibravam no meu bolso. Eu desejava, e já assumia toda a onda quântica/budista, que meu simples pensamento fosse capaz de trazer o químico para abençoar minha trip vindoura. E me dar uma entrevista.

Todos os palestrantes tomaram o palco. E, antes das considerações finais, John Hana, fundador do Erowid, maior fonte online de informação sobre drogas, com a voz embargada, abre o jogo: "Não podemos ser hipócritas". Os entusiastas de psicodélicos conseguem seus "sacramentos" de fontes clandestinas. Naquela tarde, John conversou com Casey, seu amigo, um químico inglês preso, condenado a 35 anos de cadeia por sintetizar LSD. Ele gravou uma mensagem por Skype que foi reproduzida a todos. Toda a questão metafísica, pessoal, esbarra, para não dizer se estabaca, no ideário político. Casey pedia que cada um ali se engajasse na luta pela discussão de leis mais. lúcidas.

Derramei lágrimas. Assim como muitos pelo auditório. Depois de três dias em uma zona livre, escutando nada além de relatos de liberdade interior e sentimentos de unidade, aquele homem preso justamente por fabricar as chaves das portas da percepção foi um banho da alucinatória realidade em que estamos enfiados. Sob palmas, alguns dos palestrantes deram suas palavras finais. Alex Grey, artista plástico de Nova York, especialista em reproduzir as visões de estados alterados, puxa uma oração final:

"Pai nosso que está em Basel."

Ele se referia a Albert Hofmann, que não apareceu para o encerramento do fórum. Do começo ao fim, foi como um Godot sorridente e iluminado. Só na terça, dois dias depois, vim a saber: o bom doutor estava muito bem de saúde. Só não gostou que marcaram o fórum na Semana Santa. Não católico, ele enxerga valor e sentido nas datas sagradas. Ainda assim, no dia da ressurreição de Cristo, papas da psicodelia declaravam devidamente renascido o movimento psicodélico clínico. E eu contava os minutos para a manhã seguinte, quando eu jogaria meus microgramas sob a língua.

 

Havaí, 29 de abril

 

É a última manhã do curso de sonho lúcido e eu estou satisfeito. Da turma fui dos que mais tiveram sonhos lúcidos e dos mais férteis, longos e estáveis. Em três noites voei, atravessei paredes, escapei de prisões de pesadelo, fiz sexo, dirigi uma motocicleta feito um alucinado, pilotando sobre telhados e ônibus. Certo de que teria material para a presente reportagem. Porém, mais do que dono de um videogame interno, começava a absorver mais profundamente a idéia martelante de LaBerge. De que a realidade é uma abstração. Uma versão de uma verdade invisível a olhos humanos.

Depois de mais de um mês na estrada, em uma trip que começou na Suíça, no Fórum Psicodélico, e termina hoje mesmo, no Havaí, o sentimento que carregava era uma espécie de jet lag da consciência. Ainda reverbera em mim a experiência com LSD em Basel, a série de incontáveis coincidências que deram as caras depois. A habilidade recém-adquirida de mergulhar nos sonhos com máscara e oxigênio parecia um ponto final perfeito para esse começo de primavera. Estou alegre especialmente pela possibilidade de transformação interna, de encontrar na ciência, nos psicodélicos e no sono uma lucidez mais aguçada no sonho compartilhado que chamamos de realidade.

Mas a vida tem seus arroubos de ficção. Naquela última aula, LaBerge trata especialmente de sonhos com mortos. Sem puxar certezas, ele emenda relatos sobre como a lucidez ao lidar com a presença de mortos em sonhos pode ser curativa. Uma experiência semelhante ou mais profunda do que encontros na vida desperta. Fala sobre a visão quase mística da consciência como algo imaterial, solta no tempo. E que, real ou poeticamente, sonhar com mortos é uma forma de encontro entre duas consciências.

Eis que no fim da aula, puxando e-mails, a bomba bate à caixa: Albert Hofmann morreu naquela manhã em Basel.

 

Volto ao quarto transtornado, em comoção suspensa, e vasculho meus blocos. Mais de 250 páginas rascunhadas no último mês, 20 delas sobre uma trip de LSD na segunda-feira em Basel. Outras cinco sobre meu sonho com Albert Hofmann, quando ele disse não ter recebido, afinal, meu bilhete. Sentado em minha frente, afirmou que nem para uma entrevista onírica ele tinha tempo. Estava velho demais, já havia dito tudo o que tinha para dizer. Me dá um conselho: nunca tente fazer LSD. É perigoso e difícil demais. Peço um retrato dele, algo que sei ser inútil, já que não dá para levar ao mundo uma foto de sonho. Ainda assim aponto a câmera. Dr. Hofmann sorri, mas vai encolhendo e encolhendo até desaparecer antes do clique.

Remoendo as duas reportagens que teria que escrever, o acaso de novo faz das suas. Alguém no retiro budista me oferece um LSD puro. Me rendo. Em honra de Albert Hofmann, eu precisava da trip derradeira. Quando ingeri a dose, defronte a uma estátua de Buda deitado, tinha um plano simples: sentar na falésia negra onde o Pacífico quebra furioso e de onde se avista a poucas milhas a lava que brota fresca das fendas vulcânicas e cai no mar.

Caminhando debaixo do sol a pino, uma estranha onda toma os olhos. Um velho que caminha na frente tem um movimento complexo. Sua corcunda, seus braços soltos. ele parece um animal. Mas espera. Ele é um animal. E eu também. Vejo minhas mãos com pêlos. E poros. E as folhas das árvores têm poros e respiram. E as pedras no chão também têm poros e uma voz inaudível me diz que elas também respiram. Que também existem. A tarde fica acesa e me invade quando chego à vista oceânica.

Simmm, agora bateu, são duas da tarde quando acho um lugar à sombra e solto nos fones de ouvido a música favorita de Albert Hofmann para experiências de LSD. "Quinteto em dó maior", de Franz Schubert, Adagio. O mar e o céu se revelam em perfeitas espirais, idênticas a galáxias e DNAs e ao vórtex que se forma toda vez que fecho os olhos. As conchas são tingidas da mesma estampa que planetas. Quando a realidade parecia absolutamente manifesta, penso em Albert Hofmann. Mente manifesta, meu caro, não realidade.

Uma consciência clara, a sensação presente de que tudo o que vejo e sinto, o tempo inclusive, não passa de uma abstração. Simmm, fez sentido. Um monte de osso e carne que escolhe uma identidade, ganha um nome. E a entrevista com Albert Hofmann chegou toda junta, sem palavras, apenas lição. A existência é ilusória e real. Uma conta que não fecha. Deus é humor.

Vibrou em mim aquele suspense terrível, a iminência da resposta que está em toda parte, escondida por trás dos átomos e das idéias. Mas que eu sentia estar pulsando, quase visível. Estaco na paisagem, o macroscópico. Eu nunca fui quem eu sou agora. Nunca estive tão estranho - e próximo da lucidez, pois, acordado como nunca, senti o grande "Ahá! Isso é um sonho".

Vejo o oceano, uma veia em minha mão e a fumaça branca que sobe do encontro da lava que escorre a uma milha e dá no oceano. Que eu posso dizer? Eu não sei. Só me dou conta de algo indizível quando escuto o acorde final da sinfonia que me trouxe aqui. Uma beleza forte demais se revela. Nada está derretendo, tudo está perfeitamente em seu lugar, e cercado de vida e de morte naquele pedregulho que brotou no meio do mar estou, simplesmente, existindo. Nada dura. Desabo em lágrimas incontidas. Uma voz doce e articulada me lembra: "Seja agradecido". Eu Sou. Hofmann e LaBerge, Suíça e Havaí, psicodélicos e sonhos lúcidos. tudo leva ao mesmo ponto. Acordar, estar atento.

Penso na futilidade deste texto que luto agora para terminar e agora compreendo por que o centenário gênio é tratado com tamanha reverência. Hofmann trouxe o LSD, foi o primeiro a tomá-lo e, até hoje, o que melhor descreveu a experiência psicodélica. Porém não se considerava mais do que um contemplador dos mistérios da existência. Não separava a química da física, da morte, da vida e do tempo. E inaugurou no mundo, no meio da Segunda Guerra Mundial, uma era que começou silenciosa e ainda está para florescer. Do estudo sistemático e aventureiro dos estados alterados de consciência. Um tempo capaz de nos fazer entender, sub e supraconscientemente, o clichê budista: tudo está conectado, tudo é ilusão, tudo que existe não passa de uma coisa só, solta no tempo, mergulhada em um imenso vazio que cuida de deixar tudo. como é.

A resposta estava ali, como está em qualquer canto do universo. Albert Hofmann não é importante, LaBerge não é importante, nem horas de aulas e palestras onde a consciência é tratada como uma jóia bruta. O que importa é aquele instante, algo bem simples. A realidade é um capricho mental, uma manifestação daquilo que há entre a carne e a alma, uma aventura psicodélica, um sonho.

 

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